domingo, 9 de maio de 2010

A letra fria e os espíritos mutilados - Por Jeová Barros Jr.

Este é o terceiro domingo que publicamos artigos do jovem advogado Jeová Barros Jr. Parece-nos uma história de três prazeres. Aqui do blog, pois com seu texto enriquece nosso conteúdo. Dos nossos leitores, que têm acesso a um texto bem escrito e derivado de pesquisa. E do próprio autor, que encontra através do nosso veículo o seu leitor, a interação entre sua boca e os ouvidos dos nossos leitores.
Temos a certeza que colocar no papel o resultado de ponderações depois de estudos é um prazer e uma responsabilidade, que com inteligência Jeová tem nos ofertado. Abraço amigo! Vamos ao artigo deste domingo!
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A letra fria e os espíritos mutilados - (Ditadura e Literatura)



O Direito, felizmente, não é apenas a lei: não é um punhado de letras colocadas num papel branco que, no conhecido ditado popular, aceita tudo. Fala-se até, em linguagem bíblica, que “a letra mata, mas o espírito vivifica”, ou seja, o espírito traz vida, foi isso que o apóstolo Paulo escreveu.

Eu quero, por hoje, abandonar aquela letra fria da lei, para tratar da dimensão humana do Direito, a dimensão dos dramas do ser humano, em tempos de ditadura. Vou fazer isso por meio da literatura. Quero tentar – tentar, somente, pois não podemos sentir as dores dos torturados nem podemos sentir as saudades dos que ficaram esperando pelos seus desaparecidos – traduzir como os espíritos dos torturados e assassinados foram mutilados.

Vou solicitar a ajuda do escritor uruguaio Eduardo Galeano, autor do aclamado e tão conhecido livro “As veias abertas da América Latina”, em relato que ele faz em um outro filho (digo, livro) dele, o qual se chama “Memórias do Fogo”. São três volumes, nos quais ele reuniu pequenos relatos, contando lindas histórias da nossa gente latino-americana; os relatos, que passo a transcrever, estão no último volume dessa coletânea.

Espero que, nesse domingo, as palavras escritas por Galeano não só tornem a nossa manhã mais humana, mas que aqueça a alma e acenda uma chama no nosso espírito, como se fossem relatos contados, ao redor de uma fogueira, esquentando e acalentando nossas memórias e sentimentos.

Lembram-se que eu mencionei, no domingo passado, do movimento das “Vós da Praça de Maio? Trago-as de volta... Segue abaixo; agora é com o Galeano.

AS MÃES DA PRAÇA DE MAIO

As Mães da Praça de Maio, mulheres paridas por seus filhos, são o coro grego dessa tragédia. Segurando as fotos de seus desaparecidos, dão voltas e voltas na pirâmide, em frente à rosada casa de governo, com a mesma obstinação com a qual peregrinaram por quartéis e delegacias e sacristias, secas de tanto chorar, desesperadas de tanto esperar os que estavam e já não estão, ou talvez, continuem estando; quem sabe?

-- Acordo e sinto que está vivo! – diz uma, dizem todas. –Vou-me esvaziando enquanto avança a manhã. Morre ao meio-dia. Ressuscita de tarde. Então, torno a acreditar que chegará e de noite caio dormindo sem esperança. Acordo e sinto que está vivo...

São chamadas de loucas. Normalmente não se fala delas. Normalizada a situação, o dólar está barato e certa gente também. Os poetas loucos vão para a morte e os poetas normais beijam a espada e cometem elogios e silêncios. Com toda normalidade, o ministro de Economia caça leões e girafas nas selvas africanas e os generais caçam trabalhadores nos subúrbios de Buenos Aires. Novas normas de linguagem obrigam a imprensa a chamar ditadura militar de Reorganização Nacional.
Buenos Aires, 1977

Que tal mais um relato de Galeano? É que, sem o próximo, esse não fica completo...

AS AVÓS DETETIVES

Enquanto se desintegra a ditadura militar, na Argentina, as Avós da Praça de Maio andam em busca dos netos perdidos. Esses bebês, aprisionados com seus pais, ou nascidos em campos de concentração, foram repartidos como butim de guerra; e vários têm como pais os assassinos de seus pais. As avós investigam a partir do que houver: fotos, dados soltos, uma marca de nascimento, alguém que viu alguma coisa, e, assim, abrindo passos a golpes de sagacidade e de guarda-chuva, já recuperaram alguns.

Tâmara Arze, que desapareceu com um ano e meio de idade, não foi parar em mãos militares. Está numa aldeia suburbana, na casa da boa gente que a recolheu quando foi jogada por aí. A pedido da mãe, as avós empreendem a busca. Contavam com poucas pistas. Após um longo e complicado rastrear, a encontraram. Cada manhã, Tâmara vende querosene num carro puxado por cavalo, mas não se queixa da sorte; e, a princípio, não quer nem ouvir falar de sua mãe verdadeira. Muito aos pouquinhos as avós vão lhe explicando que ela é filha de Rosa, uma operária boliviana que jamais a abandonou. Que uma noite sua mãe foi capturada, na saída da fábrica, em Buenos Aires...
Buenos Aires, 1983.

TAMARA VOA DUAS VEZES

Rosa foi torturada, sob o controle de um médico que mandava parar, e violentada, e fuzilada com balas de festim. Passou oito anos presa, sem processo nem explicações, até que, no ano passado, a expulsaram da Argentina. Agora, no aeroporto de Lima, espera. Por cima dos Andes, sua filha Tâmara vem voando rumo a ela.

Tâmara viaja acompanhada por duas das avós que a encontraram. Devora tudo que serve no avião, sem deixar nenhuma migalha de pão ou um grão de açúcar.

Em Lima, Rosa e Tâmara se descobrem. Olham-se no espelho, juntas, e são idênticas: os mesmos olhos, a mesma boca, as mesmas pintas nos mesmos lugares.

Quando chega a noite, Rosa banha a filha. Ao deitá-la, sente um cheiro leitoso, adocicado; e torna a banhá-la. E outra vez. E por mais que esfregue o sabonete, não há maneira de tirar-lhe esse cheiro. É um cheiro raro... E, de repente, Rosa recorda. Este é o cheiro dos bebês quando acabam de mamar. Tâmara tem dez anos e nesta noite tem cheiro de recém nascida.
Lima, 1983
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Agora comigo: No próximo domingo o autor volta ao tema da ditadura argentina, encerrando o tema. Para acesso aos textos anteriores, cliquem no marcador (ARTIGOS) logo aqui abaixo.
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