terça-feira, 1 de março de 2011

O caso da escrivã sob outro ponto vista legal - Por Sérgio Oliveira

Inicialmente tomei a liberdade de subscrever este artigo movido pelo convite do blogueiro Ronaldo Cesar, que trouxe a baila, em seu blog, o caso da escrivã da polícia civil de São Paulo que foi presa após uma ação da polícia em seu desfavor, sob a acusação de receber propina. Porém, o caso vai além do flagrante, a escrivã foi submetida a uma busca e apreensão pessoal que levaram os policiais a tirarem sua roupa. Tendo em vista que o objeto material do crime se encontrava escondido em sua calcinha e toda a operação foi filmada pelos delegados. Enfim, quem teve a oportunidade de ver o video no youtube, se deparou com várias situações que merecem o devido deslinde. Ao me debruçar sobre dos fatos exíguos no caso da escrivã, de forma exauriente arroguei o processo dialético sem descurar-me a corroborar quanto a inobservância normativa, doutrinária e jurisprundencial.

Sem dúvida o caso da policial revelou grande indignação face aos atos praticados pelos delegados para que a prisão em flagrante contra a escrivã ocorresse de forma efetiva. É inegável que todo tipo de excesso deve ser exarado das práticas de quaisquer função pública, em que pese, a constante busca do ideal de razoabilidade e proporcionalidade deverá ser o norteado do núcleo fundante de consecução do poder legítimo estatal.

Não obstante, vários pontos devem ser observados diante da prisão da escrivã, sobretudo à luz do ordenamento jurídico evitando-se as mais diversas intelecções desabridas que, naturalmente, sempre se atrelam à conclusões imediatistas perfazidas pelo homem médio.

As peculiaridades do caso em comento e a íntegra do teor das imagens, permissa vénia, vão além dos comentários postados no blog. Conquanto, o devir da hermenêutica jurídica tem o condão de analisar o caso concreto em sua aplicabilidade legal para que a tutela jurisdicional seja satisfativa de modo que se possa subsumir o fato a norma. Inarredavelmente todo excesso, por mais que resguarde um ato meramente adstrito a um comando legal, deve ser sopesado para que não haja uma exacerbação do jus puniendi mediante à prática cometida. Outrossim, a mesma deve salvaguardar pertinência, ainda que se encontre sob a égide do ordenamento jurídico.

Imperioso é, desde logo, reconhecer que discricionariedade está divorciada da arbitrariedade, que apenas se revela como possibilidade de escolha ou opção dentro dos limites traçados pela lei. Em linhas gerais, a outorga do poder discricionário urge de um ato de confiança do legislador no agente público que ocupa determinada função estatal, como bem assevera Galeno Lacerda.

Ao lume dos ensinamentos de Humberto Theodoro Jr. quando este aduz que, o pleno e voraz dinamismo da sociedade e suas nuances geradas em complexidades que deveras se encontra sempre em conflito, e cujo este, dificilmente estará sob o vislumbrar óptico do legislador e sob o manto do ordenamento jurídico, onde o mesmo não terá como prevê os comandos normativos específicos para cada caso em sua essência. É neste ínterim, que todos os atos praticados por aqueles que assumem uma determinada jurisdição devem zelar pelas suas respectivas competências. Que ora abarca o caso da policial presa em flagrante, sendo de bastante relevo o entendimento pormenorizado do vem a ser o “poder de polícia” e o exercício de suas atribuições e sua relevância, sobretudo, tangenciado no regime jurídico administrativo através de prerrogativas e sujeições.

Maria Silvia di Pietro ao falar do poder de polícia, confronta dois aspectos fundamentais que se encontram entrelaçados: o cidadão que exerce plenamente os seus direitos e a Administração Pública; que através da polícia, tem por incumbência o condicionamento do exercício daqueles direitos e o bem-estar coletivo. Usando os seus atributos de poder de polícia: “discricionariedade”, coercibilidade e auto-executoriedade.

Em análise detida das imagens, os policiais agiram conforme a discricionariedade do ato e a vinculação de polícia judiciária adstrita sob o pálio do artigo 249 do Código de Processo Penal, in verbis:

Art. 249. a busca em mulher será feita por outra mulher, se não importar retardamento ou prejuízo da diligência. (grifos nossos).

Como bem ensina o Dr. Juiz de Direito Marcelo Marques Cabral, “os direitos e garantias individuais, não são absolutos”. Ou seja, o interesse público sempre será o vetor do poder de império do Estado em suas prerrogativas. A legislação processual penal, ramo do direito público, em seu capítulo XI - DA BUSCA E DA APREENSÃO em seu artigo supracitado revela a realização procedimental em se tratando de “mulher”. O legislador atentou à singularidade do capítulo quando este envolver a integridade física e moral em se tratando de uma “mulher”. De mais a mais, o caput da norma processual é bem clara quando se refere que a busca em mulher, será feita por outra para salvaguardar sua intimidade. Todavia, a própria norma em comento em sua 2a parte, aduz sua relativação quando houver efetividade na busca, evite-se o seu retardamento para que não haja prejuízo na diligência. Destarte, os policiais acionaram um guarda-civil metropolitana feminina e uma policial militar feminina para que fosse iniciada a busca. No entanto, o que se observa no video é que a escrivã sempre mostra-se incisiva em obstar o evento, momentos antes de ser algemada e ter a voz de prisão decretada em seu desfavor. Ainda no mesmo evento, a policial se joga ao chão proporcionando aos policiais o “retardamento” na busca gerando uma temerária inconsistência na possibilidade da mesma vir a se desfazer da prova do crime, perfazendo-se assim, a necessária atuação do policial na busca pessoal contra a escrivã. Portanto, a interpretação da norma traz uma sensível exceção ao caso concreto legitimando a prática do ato.

A Lei 4.898/65, que regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa civil e penal, nos casos de abuso de autoridade, traz, também, uma peculiaridade com o caso em tela envolvendo a escrivã e os policiais. in verbis:

Art. 4o Constitui também abuso de autoridade:

a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder; (grifos nosso);

b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei. (grifos nosso).

Deveras, as duas alíneas do artigo supracitado guardam pertinência atinente a súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal número 11, in verbis:

Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.

Doravante exposto, o artigo 284 da lei processual penal também adverte, in verbis:

Art. 284. não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso.

Em suma, a culpa exclusiva da ré, diga-se de passagem “a escrivã”, deu azo para que os policiais praticassem todos os atos legalmente estabelecidos em lei. Portanto, a maneira ilícita de buscar a prova como foi comentado pelo mediador do blog, não guarda nenhuma pertinência jurídica com o caso, como também não há falar de abuso de autoridade como exposto a cima, pelo fato de não haver no caso, precisamente a existência aqui de uma relação de sujeição pessoal, e sujeição no caso da escrivã não é pessoal. A sujeição aqui tratada como abuso de autoridade é da vítima perante o estado onde a pessoa se aproveita deste tipo de subjugação, que já existe, para exercer violência ou grave ameaça contra a vítima fora dos casos autorizados em lei, há se falar da infração e consequentemente abuso de autoridade.

Observando os comentários, cogitou-se também a prática de estupro. Nada é mais absurdo! Tendo em vista que o Título VI – Dos crimes contra a dignidade sexual em seu capítulo I - dos crimes contra a liberdade sexual, define o estupro em seu artigo 213, com alterações da lei 12015/09, in verbis:

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Stuprum, acerca dos ensinamentos magistrais de Chrysolito Gusmão, é por definição: “o ato pelo qual o indivíduo usa de seus meios físicos ou mentais para, por meio de violência, conseguir satisfazer a lascívia com a sua vítima, qualquer que seja o sexo”. Destarte, em nenhum momento fica evidenciada a intenção do policial à pratica do estupro ou que não conseguiu realizá-la por circunstâncias alheias à sua vontade. Portanto, a cogitação de estupro é totalmente incongruente e juridicamente inconsistente.

A Escrivã praticou um crime de improbidade administrativa com previsão legal na lei 8429/92 com influxo no código penal em seu capítulo I - Dos crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral, previsto no título XI - Dos crimes contra a administração pública, mas precisamente, o crime de “Corrupção Passiva” à luz do artigo 317 do Código Penal, e não o crime de “Concussão” como está postado no blog.

A escrivã foi acusada de receber propina negando-se a lavrar um auto de prisão em flagrante, que por sua vez, veio a receber em seu favor, quantia em pecúnia consubstanciando em prática delituosa. Sem embargos, o crime de “concussão e corrupção passiva” resguardam entre si, singular distinção ao fato cometido pela policial. Se não vejamos:

Concussão - artigo 316, in verbis:

Art. 316. Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida:

Pena – reclusão, de 2 a 8 anos, e multa.

Corrupção passiva - artigo 317, in verbis:

Art. 317. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem: Pena – reclusão, de 2 a 12 anos, e multa.

A escrivã recebeu propina ex vi legis artigo 317 - CP. Outrossim, em seu desfavor incorre o § 1o do mesmo artigo, onde a pena é aumentada de 1/3, se, em consequência da vantagem ou promessa, o funcionário venha retardar ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional. (grifos nossos).

Em linhas gerais, para que houvesse enquadramento no tipo penal previsto no artigo 316 CP, configurar-se-ia “exigência” ato legal que houvesse criado óbice imposto pela escrivã face a busca de um direito alheio. Como por exemplo: uma vítima noticia um crime contra ela e a escrivã exigisse propina sob pena de não lavrar TCO. Diferentemente do ocorrido, onde a mesma teria “recebido” propina para não praticar ato de seu ofício, que no caso em tela seria a lavratura de um auto de prisão em flagrante.

Ainda debruçado diante dos comentários do blog do Ronaldo Cesar, consta a possibilidade de flagrante forçado, doutrinariamente chamado de provocado ou preparado em virtude das notas serem xerocopiadas que outrossim, configuraria em crime impossível.

Em verdade, os policiais obtiveram através de indícios à prática delituosa continuada da escrivã em seu ofício. (Que há depender do que conjunto probatório nos autos, poderá comprometer ainda mais a situação da escrivã perante a justiça). Com fulcro no artigo 239 do CPP, in verbis:

CapítuLo X - DOS INDÍCIOS

Art. 239. Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.

Tais indícios levaram os policias a crerem na possibilidade de deslinde dos crimes cometidos pela escrivã coadunando assim, o flagrante “esperado”, cuja hipótese autoriza a prisão em flagrante e a sua mais perfeita validade. Como assevera Fernanda Maria Zichia Escobar: “a atividade policial serve apenas de alerta, não havendo agente provocador. Assim, se chega ao conhecimento da polícia a notícia de que um crime será praticado, os agentes se deslocam para o local e ficam aguardando sua prática, momento em que será feita, então, a efetivação da prisão e, flagrante. Portanto, há delito e prisão válida. Destarte, não há falar em flagrante forçado, e sim, flagrante esperado.

Com relação a crime impossível, Fernando Capez com brilhantismo que lhe é peculiar conceitua crime impossível também chamado de tentativa inidônia que pela sua ineficácia total do meio empregado ou pela impropriedade absoluta do objeto material, é possível de se consumar. A importância de aferição desta idoneidade deve ser feita no momento em que se realiza a ação delituosa. Ou seja, o meio concreto a consecução de um resultado, anterior ao início da ação executória devendo ser apto a produzir algum efeito. Exemplo: a escrivã recebeu um valor em pecúnia. Porém, as notas eram falsas, a questão aqui não é a veracidade do lastro monetário produzido pelas cédulas, mas sim, o imediato efeito que ela pode causar em uma pessoa cujo discernimento acerca do valor eventual produzido pelas notas, possa vir a gerar na mente de quem se apropria das mesmas. Em suma, um larápio não deixa de ser criminoso pela ação de furtar ou “propinar” um objeto que logo em seguida descubra ser este falso. No caso em tela, o fato das notas serem falsas não descaracteriza a intenção criminosa da escrivã ao receber a propina, até porque, em sua consciência as notas eram verdadeiras e o seu objetivo foi alcançado. Portanto, não há falar em crime impossível, muito menos por delito putativo por erro de tipo: onde a escrivã não sabia que as notas eram falsas devido a um erro de apreciação da realidade. Conquanto, as cédulas eram reais, mais, substancialmente falsas, cuja observância, exigia uma apreciação de conhecimento técnico na aferição de veracidade acerca das mesmas. Ou seja, qualquer um pode cair no golpe da nota falsa em virtude de idêntica semelhança à uma cédula verdadeira.

Uma das questões comentadas no texto no eminente Ronaldo Cesar, autor do blog e outras pessoas que abrilhantaram o mesmo com suas opiniões, foi em relação aos supostos crimes praticados pelos policiais face ao crime de corrupção passiva cometido pela escrivã.

Segundo a corregedora Maria Inês Trefiglio Valente, os policiais agiram dentro do poder de polícia. Não havendo excesso nos meios empregados. As palavras do promotor do caso, Everton Zanella, a retirada da roupa foi uma consequência do transcorrer da operação, havendo apenas um pouco de excesso na hora da retirada da calça da escrivã e que em nenhum momento vislumbrou a intenção do delegado em praticar qualquer ato contra a libido da escrivã.

O que muitas vezes se espera com notícias desta monta, reside na repercussão geral de indignação, principalmente pela explicitude causada pelas imagens que indubitavelmente geraram indignação no cidadão durante a ação policial. O próprio secretário de segurança pública manifestou sua insatisfação afastando os delegados da corregedoria. Mas casos como este, sempre são movidos pela paixão que ofuscam os possíveis resultados maléficos, que porventura causam em um sem número indefinido de pessoas, chamado pelos doutrinadores de “interesse público”.

Fico imaginando se a escrivã, ao invés de esconder o fruto da propina na calcinha, escondesse uma prova documental onde indicasse pistas de um maníaco estuprador de crianças desaparecidas. Acredito peremptoriamente que, colocar na balança o que merece ser verdadeiramente protegido e tutelado pelo Estado, é a grande problemática em questão.

O termo Corrupção do latim corruptus, significa: “quebrado em pedaços; tornar pútrido”. Até o momento não pude vislumbrar ninguém se pronunciando o quão nocivos são os efeitos da corruptela perante uma sociedade, e, sendo esta corrupta, sacrifica a camada pobre que dependem exclusivamente de serviços públicos. E para quem não imagina, a corrupção é a chaga cancerígena de proporções devastadoras em uma sociedade organizada de homens e “mulheres” que trabalham dignamente com honra e honestidade; e que procuram passar esta virtude para filhos e netos na busca de um mundo cada vez melhor para se viver, principalmente viver em paz.

A conduta da escrivã, por se tratar ela de uma policial que tem o dever-poder de combater tal prática, se mostra incomensuravelmente desonrosa e devastadora em meio a uma sociedade cada vez mais carente de segurança pública. Não resta dúvida que o comportamento negativo deve ser erga omnes como diria o saudoso Orlando Gomes, e a inobservância do crime de corrupção passiva praticada pela escrivã em meio a suposta exacerbação da ação policial para evitar o feito, não deve entrar no rol da psicologia sensacionlista das massas que cada vez mais se distancia do exercício democrático da busca dos meios institucionalizados para que se possa reclamar um direito posto e pressuposto, como alude em sua obra o ex-ministro Eros Grau.

A corrupção da democracia gera demagogia e o maior crime é aquele que atinge um número indeterminado pessoas numa sociedade de despossuídos e bestializados que estão sob o alvedrio daqueles que deveriam lhe servir e acabam por arruinar, ainda mais, a sua condição de vida, onde o efeito resultante da prática delituosa da escrivã é traduzida nos IDHs de cidades onde não há a menor possibilidade de se viver com o mínimo de dignidade, de per si, também se configura como previsão constitucional. Não obstante a miserabilidade alheia, existem famílias que lutam diuturnamente pela sobrevivência, enquanto estamos aqui, discutindo a ingerência na moralidade de uma criminosa que a perdeu muito antes de ter sido presa em flagrante.

Sergio Oliveira

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