segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Artigo: O que os britânicos podem ensinar ao ministro Barroso, por Rodrigo de Lacerda Carelli



O ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso esteve na Inglaterra em maio deste ano, para expor no evento denominado “Brazil Forum UK 2017”. Foi nesse colóquio que Barroso divulgou a inverossímil “estatística” segundo a qual o Brasil teria 98% das ações trabalhistas do planeta, entre outros dados relativos ao direito do trabalho que da mesma forma não mantêm proximidade dos fatos.

Além de sua participação no evento, Barroso poderia ter aproveitado a oportunidade e assimilado algumas coisas com os ingleses. Eles teriam coisas interessantes a ensinar-lhe, como, por exemplo, que os políticos britânicos, tanto conservadores, quanto trabalhistas, depois de anos de Tatcherismo intercalados pelo governo do “New Labour”, divorciaram-se definitivamente do discurso do “Livre Mercado”. Os conservadores lançaram este ano manifesto no qual declaram que “rejeitam o culto do individualismo egoísta.” “Nós não acreditamos em livres mercados sem interferência estatal”, afirma contundentemente o manifesto conservador, acrescentando que a regulação é necessária para colocar ordem na economia e propondo “incrementar as proteções e os direitos dos trabalhadores” para “criar uma economia que funcione para todos”. Os trabalhistas, em seu próprio manifesto, vieram com a mesma promessa – uma economia para todos -, defendendo que as empresas deveriam ser direcionadas não para proveito apenas dos seus acionistas, mas também para o benefício dos empregados, consumidores e para o público como um todo. Os manifestos são somente parte de um movimento maior de oposição ao livre mercado: “Mercados podem ser brutais!”, afirmou o líder da bancada parlamentar denominada “Free Enterprise Group”, toda composta por conservadores.

Qual a razão de todo esse movimento? Os salários britânicos estão em sua maior queda desde as guerras napoleônicas e a habitação própria está no nível mais baixo em 30 anos, sendo que o número de pessoas morando de aluguel é maior do que em 1960. O mercado de aluguel de moradias mais que dobrou desde 2004.Atualmente, no Reino Unido, um a cada sete inquilinos paga mais da metade de seus salários com aluguel. 200.000 casas estão vazias na Inglaterra, no que chamam de “Crise da Habitação”. O Estado Inglês, preocupado, afirmou que irá tomar medidas, seja com a construção de habitações ou aumento da proteção aos inquilinos que não têm perspectiva de aquisição de imóveis, ou aumentando impostos para quem tenha uma segunda propriedade.

Parece, no entanto, que o ministro Barroso não percebeu esse movimento na Inglaterra. O magistrado, em palestra recente no Brasil, comparou o mercado de trabalho justamente com o de imóveis, afirmando que é plausível que “excesso” de proteção trabalhista produz desemprego e formalidade, pois, segundo ele, uma nova legislação menos protetiva ao locatário no Brasil aumentou a oferta de imóveis para aluguéis e o preço para locação teria caído. Ora, mais uma vez os números não favorecem o ministro. No primeiro ano depois das alterações na lei do inquilinato no Brasil no ano 2000 houve aumento exorbitante no valor do aluguel, além de ter causado desproteção aos locatários. O metro quadrado no Rio de Janeiro aumentou de fevereiro de 2008 a julho de 2017 mais de 100%, mesmo com a queda nos últimos anos decorrentes da crise econômica. Entretanto, essa não é a parte pior da afirmação do ministro; a mais grave é que não se deve e não se pode comparar imóvel com trabalhador. O princípio fundamental da Organização Internacional do Trabalho é de que “o trabalho não é uma mercadoria” (Declaração de Filadélfia, 1944 – os britânicos, ainda como Império, estavam presentes à Conferência). O trabalho nada mais é do que o tempo de um ser humano colocado à disposição de outro. O trabalhador é um ser humano, sujeito de direitos, cujo trabalho (poderíamos chamá-lo de tempo, ou de pedaço de sua vida!) deve ser valorizado, conforme manda a Constituição, como fundamento da República (art. 1º, IV) e da Ordem Econômica (art. 170, caput), que norteia e limita todas as ações no espaço democrático, em especial de seu guardião maior, o Supremo Tribunal Federal.

O ministro ainda retornou nessa conferência ao assunto do número de ações trabalhistas no Brasil, assumindo que “grande parte dos empregadores deve mesmo estar descumprindo a legislação trabalhista”. Porém, ao mesmo tempo, insiste que deve haver outras causas possíveis, de igual relevância, alegando ser “barato demais litigar no Brasil”, citando a facilidade de acesso aos tribunais superiores. É notório, no entanto, que a via dos tribunais superiores é trilhada por litigantes habituais: o Estado e as grandes empresas como bancos, concessionárias privadas de serviço público e processadoras de alimentos, e não, por regra, os trabalhadores. 69% da movimentação do Tribunal Superior do Trabalho é realizada por empregadores, e 73% dos recursos de revista são patronais Barroso terminou repetindo argumento que “a lógica de que o empregado tem sempre razão também estimula o comportamento incorreto, nem por um lado e nem por outro,” aparentando aqui dizer que a Justiça do Trabalho fomentaria o ajuizamento de ações temerárias ou desonestas de trabalhadores.

Talvez aqui esteja a lição mais importante que os britânicos poderiam ensinar ao ministro Barroso. Recentemente a Suprema Corte do Reino Unido decidiu pela ilegalidade da exigência de custas processuais para os trabalhadores reclamarem perante os tribunais, implementada pelo parlamento em 2013 por iniciativa do governo daquele país, que resultou na redução artificial e forçada de 70% no número de ações trabalhistas.Antes desse dispositivo, o acesso era gratuito. A decisão foi entendida pela imprensa britânica como uma “triunfante defesa do Estado de Direito”, bem como uma reprimenda ao Poder Executivo que introduziu as medidas sem provas que sustentassem a decisão de implementação das custas ou sem uma mais aprofundada discussão parlamentar.

A Suprema Corte assim decidiu com base na Magna Carta, de 1297, que dispõe que “Nós não venderemos a nenhum homem, não vamos negar ou retardar para nenhum homem a Justiça ou o Direito” (Nulli vendemus, nulli negabimus aut differemus rectum aut justiciam) (p.22). Conforme dispuseram os “Lords” e a “Lady” que compõem a Corte, o direito constitucional de acesso aos tribunais é inerente e central ao Estado de Direito (“Rule of Law”) e à Democracia, o que significa que a sociedade é governada pelo Direito. O direito de acesso à Justiça também significa que as pessoas e as empresas precisam saber que podem fazer cumprir seus direitos se necessitarem e que, por outro lado, se falharem em cumprir suas obrigações, é provável que haja um remédio judicial contra eles. “É esse conhecimento que sustenta as relações sociais e econômicas no dia-a-dia”. (p. 21) Acrescentou que “quando o parlamento aprova leis criando direitos trabalhistas, por exemplo, ele o faz não somente para conferir benefícios aos empregados individualmente, mas porque foi decidido que é interesse público que tais direitos devam ser efetivados.”(p. 21)

A Corte argumentou que a negociação e a mediação são instrumentos válidos somente se existir um sistema judiciário justo disponível caso esses métodos prévios falhem, pois, do contrário, “a parte na posição mais forte de barganha sempre prevalecerá.” (p. 21) Ressalta também que as empresas já estão em posição de muito mais poder em Juízo, e que o pagamento de custas simplesmente exacerba essa condição (p.40). Reconheceu, assim, que o acesso à Justiça é de interesse da sociedade, e não somente dos indivíduos (p. 21).

A Suprema Corte do Reino Unido também afastou com números a tese do governo, aparentemente corroborada por Barroso no seminário acima citado, que a introdução de obstáculos à Justiça impediria o ajuizamento de ações despropositadas ou temerárias. Verificou-se, ao contrário, que, comparando com período imediatamente anterior, a proporção de sentenças improcedentes foi consistentemente maior após a introdução das custas, estatística que é reproduzida nos recursos ao Tribunal (p.17). Os dados, mais uma vez, derrubaram a ideologia.

O ministro Barroso é relator da ADI 5766, ajuizada pelo Procurador-Geral da República, que requer a declaração de inconstitucionalidade de dispositivos da chamada “Reforma Trabalhista” (Lei nº 13.467/2017) que impedem o acesso à Justiça aos trabalhadores necessitados da gratuidade de Justiça. Nossa Constituição, similarmente à Magna Carta, protege o acesso à Justiça, ao prescrever que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” Que os ares civilizados britânicos inspirem o ministro Barroso na sua próxima tarefa na Suprema Corte tupiniquim e que seja ouvido também entre nós um brado em defesa do Estado de Direito.

Rodrigo de Lacerda Carelli - Professor da UFRJ e procurador do trabalho no RJ

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