DAMIÃO – O Queijeiro Filósofo
Nos tempos de antigamente, a maior parte das fazendas de gado - à falta das grandes usinas de beneficiamento de leite e fabricação de leite em pó que lhes garantissem mercado regular – mantinham em suas dependências uma fabriqueta de queijo que se encarregava da comercialização de sua produção leiteira e os obrigava à manutenção de um mestre-queijeiro permanente, para aprimoramento da qualidade dos seus produtos.
Assim era na Una, na ribeira do Rio Una de Philadelfo (Lôla) Branco, que frequentávamos habitualmente por conta de nossa relação de parentesco e bem-querer. Foi lá que baixou, na década de 1950, um mestre queijeiro de nome DAMIÃO, matuto simples, de pouca instrução formal, mas inteligente, competente, simpático, oriundo de uma cidade em pleno Seridó potiguar – São Fernando – e que revelava um talento extraordinário como contador de causos e histórias.
Além do mais, concluía sempre o relato dos suas experiências, com maravilhosas tiradas filosóficas que nos divertiam bastante, razão pela qual, toda a noite após o jantar mandávamos chamá-lo para uma sessão de boa e divertida prosa, na varanda da casa, que se prolongava por muito tempo. Guardo, até hoje, duas dessas histórias que são o retrato perfeito desse talento e agudeza de espírito, sobretudo quando combinado com a sua simplicidade nata.
1. A INCONTESTE AUTORIDADE DE DAMIÃO
Damião morava ainda na sua terra de origem, trabalhando e cumprindo sua experiência no ofício. Vidinha pacata, fazendo o que mais gostava de fazer, rodeado de parentes e amigos e afeiçoado aos costumes de sua pequena cidade.
Foi procurado um dia, pelo chefe político da cidade, para lhe anunciar que havia resolvido nomeá-lo para Suplente de Comissário, notícia que o assustou e de pronto reclamou do Chefe que não se sentia capacitado para o mister, por absoluta falta de experiência e pouca afeição pelo exercício de tão elevado cargo. De pronto foi refutado , sob a alegação de ser merecedor de insuspeitada confiança dos seus superiores e que deveria até agradecer a distinção recebida.
Não se sentiu confortável e depois de maturar e remoer o juízo uma noite inteira, não relutou. Na manhã seguinte, juntou o pouco que podia carregar, fez um matulão, botou nas costas e marchou em direção da estrada que saia da pequena cidade. Quando ainda percorria a ponte sobre o rio que delimitava a cidade, encontrou um amigo que, ao saber da novidade, o interpelou com toda a veemência:
- Oxente, Damião, que diabo tá acontecendo ? Logo agora que foi nomeado autoridade você deixa a gente e abandona a cidade ?
Damião respondeu de pronto, deu sua explicação e justificou:
- POR ISSO MESMO, AMIGO. JÁ VOU TARDE, POIS NA TERRA EM QUE SOU AUTORIDADE EU NÃO MORO !
Não tenho notícia se ainda voltou por lá, mesmo a passeio...
2. OS CAÇADORES DE DAMIÃO
Damião contava a história de três amigos que se embrenharam na mata, de noite, para caçar tatús. Se aprofundaram bastante e se distanciaram muito da cidade em que moravam. Lá pras tantas, um dos amigos se sentiu mal, acometido de um enfarte fulminante e simplesmente (se é que cabe o adverbio) caiu morto. Os dois sobreviventes desesperados, começam a buscar solução para o problema. Um deles, mais esperto, imaginou logo e propôs ao terceiro:
- Só tem um jeito. Eu fico aqui na mata com o defunto e você vai na cidade buscar socorro, pois não temos condições de carregar o defunto até lá.
O terceiro concordou com a ideia e, resolutamente, ganhou a vereda de volta até caminhar umas cinquenta braças na total escuridão da noite.
Parou um pouco, olhou em volta o negrume que o cercava, o silêncio profundo, a total solidão e não vacilou. Percorreu de volta o caminho que já tinha andado e foi decidido para o amigo sobrevivente que ficara com o defunto:
- Não vou sozinho de jeito algum. Não tem quem me obrigue a fazer esse caminho até à cidade.
O amigo então lhe retrucou, do alto de sua sabedoria e com firmeza:
- Então só tem um jeito. Eu vou buscar o socorro e você fica com o defunto...
O triste e covarde sobrevivente, já inteiramente derrotado e borrado nas calças, confessou a sua miséria:
- NEM FICO !
E aí Damião sentenciava, em sua lógica irrespondível e certeira filosofia:
- É ISSO AÍ, “SEU” IVAN. TEM MUITA GENTE NO MUNDO QUE NÃO PRESTA NEM PRA IR, NEM PRA FICAR !
É por isso que ainda hoje, ao me defrontar com a indecisão de certo tipo de gente, costumo usar o paradigma: Esse é como o caçador referido pelo queijeiro e filósofo Damião: Não presta pra ir, nem pra ficar !
Por Ivan Rodrigues