Durante esses últimos dias, a opinião pública nacional tem acompanhado, atentamente, o caso do desaparecimento da Eliza Samúdio e o suposto envolvimento do goleiro Bruno do Flamengo. Nesse caso, está ocorrendo o entrechoque entre o interesse de toda sociedade em ver a solução do caso, com a respectiva punição dos responsáveis, através do desempenho das autoridades envolvidas (delegados, promotores, juízes), e os interesses dos investigados.
Nesse artigo, vou procurar dissertar acerca de uma liberdade, que é a liberdade de imprensa: qual é a origem dela, o que ela significa, como deve ser exercida e quais são os efeitos dela. Depois, pretendo analisar, mais especificamente, a atuação da imprensa e do sistema penal (polícia, poder judiciário, etc.), na investigação do caso Eliza Samúdio e o goleiro Bruno.
Liberdades: exercício dos direitos humanos.
Quando falamos em liberdade, estamos falando em direitos; ou seja, a liberdade nada mais é que outro nome para direitos. Mas falando de liberdade de imprensa, estamos falando de um corolário, ou seja, de um efeito, de um desenvolvimento de uma liberdade mais ampla, que é a liberdade de expressão.
A liberdade de expressão envolve várias liberdades, tais como: liberdade de opinião, de informação, de impressão (ou publicação) e a respectiva liberdade de imprensa.
A liberdade de opinião se refere à liberdade de manifestar, livremente, pensamentos, idéias, etc. Nela, o homem pode manifestar a sua visão de mundo, o que acha correto, o que acha errado; pode expressar que acredita na existência de Deus ou que é ateu; pode defender o socialismo, o capitalismo ou considerar que o Estado deve ser abolido, como fazem os anarquistas.
Diz-se que a liberdade de opinião é uma liberdade subjetiva, pois ela se atém ao foro íntimo, se atém às convicções pessoais. Para ilustrar o que é essa liberdade subjetiva, existe um pensamento de Jean Jacques Rousseau, um dos iluministas franceses, que resume bem o que é a liberdade de opinião e cujo teor é o seguinte: “Posso não concordar com uma única palavra do que dizes, mas defenderei, até a morte, o seu direito de dizê-las”. Sendo assim, a liberdade de opinião é a liberdade de dizer, de expressar aquilo que eu bem entendo.
Conceito análogo, mas diverso, é o da liberdade de informação. A liberdade informação tem um cunho objetivo, pois ela se refere não a uma visão de mundo, mas sim a fatos ou acontecimentos; ou seja, no exercício dessa liberdade, o cidadão tem o direito de receber o conhecimento dos fatos que ocorrem na sociedade (direito de ser informado e de informar): quanto foi o jogo da seleção, quanto foi gasto de dinheiro público na promoção de um espetáculo, etc. Sendo assim, aqui, na liberdade de informação, não importa o que eu acho correto ou errado; importa, simplesmente, saber o que aconteceu: qual foi o fato da semana, do dia, do mês.
A liberdade de impressão (ou de publicação) está relacionada, diretamente, com as duas liberdades anteriores (a de opinião e a de informação), porque não basta defender uma idéia, não basta tomar conhecimento de um fato; é necessária a possibilidade de disseminar as minhas idéias e levar ao conhecimento da opinião pública os fatos notórios da sociedade que influenciam a vida minha, da minha família e de toda sociedade.
Vou dar um exemplo para tentar ajudar: na época do absolutismo, e ainda hoje em alguns estados totalitários, antes de um escritor publicar um romance que ele havia escrito, ou seja, antes de exercer a liberdade de opinião, era necessário receber uma licença do “imprimateur”, funcionário público que liberava, ou proibia, a publicação daquele romance. Esse funcionário estatal era o famigerado censor. Era ele quem decidia o que o público poderia ler.
Quando Martinho Lutero afixou, em 1517, as 95 teses dele, na porta de uma igreja alemã, desencadeando a chamada Reforma Protestante, ele nada mais fez, assim, do que exercer duas liberdades: a de opinião e a de publicação (impressão). Não bastava, para Martinho Lutero, considerar que o pagamento de indulgências era um abuso; ele assim pensava (liberdade de opinião) e levou ao conhecimento público o pensamento dele (liberdade de publicação).
Quando coloquei como título do presente tópico a menção ao “exercício dos direitos humanos”, quis demonstrar que tais liberdades (de informação, de expressão, de publicação, etc.) são necessidades que o ser humano possui; o homem tem necessidade de comunicar os anseios e medos dele; ele precisa falar e ouvir; precisa, enfim, expressar os sentimentos dele e o Estado, ou as autoridades, não podem suprimir direitos humanos tão elementares.
LIBERDADES E ABUSOS.
O Estado de Direito foi uma invenção humana que tinha por finalidade eliminar as arbitrariedades que eram cometidas, nos tempos das monarquias: o Rei era o todo-poderoso; nas mãos dele se concentrava o poder de criar leis (legislar), de aplicá-las (ou executá-las, ou seja, de governar) e, ainda, o poder de decidir conflitos de interesses (julgar). Assim, o Rei era legislador, administrador e juiz.
Para evitar essa concentração de poderes na mão de um único homem e os abusos que eram cometidos por ele, no exercício de tantas funções, foi que surgiu o Liberalismo como doutrina política: o poder que estava, unicamente, com o rei foi dividido entre vários órgãos (legislativo, judiciário e executivo). Para serem evitados os abusos, o poder continha o poder; um poder (legislativo), por exemplo, limitava o poder do executivo.
Porque estou falando em abusos? Porque as liberdades (direitos) humanas devem ser exercidas com responsabilidade; é por isso que se usa a tão conhecida frase que “a minha liberdade vai até aonde a liberdade do outro começa”. Uma coisa, dessa forma, é a liberdade e outra é o abuso dela; uma coisa é o exercício de um direito e outra coisa totalmente diversa é abuso dele.
É por isso mesmo que existem institutos como a desapropriação de uma propriedade para a reforma agrária. A propriedade, num Estado Democrático de Direito, sem dúvida, é um direito que deve ser garantido; mas uma coisa é ter o direito à propriedade e outra coisa totalmente diversa é usar essa propriedade (ou não usar) da forma que bem entende, em prejuízo da sociedade; uma coisa é ter uma propriedade produtiva e outra é ter uma propriedade latifundiária para especular, mantendo-a na improdutividade, enquanto milhões de concidadãos desejam ter um pedacinho de terra para exercer aqueles mesmos direitos humanos mais básicos: direito ao trabalho, à comida; direito de vestir, morar, etc.
Liberdade de imprensa e abuso.
A imprensa, através da liberdade que foi garantida pelas constituições, durante o século XIX, ou seja, logo após a institucionalização do Estado de Direito, ficou conhecida como um contra-poder; ela assumiu aquele papel de conter, de limitar os três poderes estatais (executivo, legislativo e judiciário), pois ela fiscalizava a atuação de tais poderes, por meio da informação que ela ministrava ao público, restringindo, dessa forma, o poder das autoridades que exerciam funções públicas, a dificultar, pois, que tais autoridades, no desempenho daquelas mesmas funções, acabassem exorbitando e cometendo os mesmos abusos que os reis cometiam. É por isso que se diz que a imprensa, na verdade, é um quarto poder; um outro poder que limita, que contém os demais poderes.
Ocorre que, da mesma forma que as autoridades abusam dos poderes que são atribuídos a elas, o quarto poder, a imprensa, no exercício legítimo de um direito (o direito de informar) pode cometer abusos e, quando age assim, aquele direito se torna uma arbitrariedade. O poder que a imprensa possui, hoje, é enorme e, quando ela exerce esse poder irresponsavelmente, pode aniquilar vidas, reputações, ou seja, pode suprimir ou violar direitos dos cidadãos. Ela viola direitos individuais, quando, por exemplo, divulga uma calúnia acerca de uma pessoa, pois, quando essa calúnia é disseminada, a honra ou reputação daquela pessoa é vulnerada e os direitos dela são ofendidos.
É interessante notar que, nas constituições, os três poderes estatais são disciplinados intensamente; nelas, se diz como um juiz deve atuar, como um legislador deve formular uma lei e como um administrador deve administrar, mas, quando se trata do quarto poder, ou seja, da imprensa, é assegurada tal liberdade, sem, no entanto, aprofundar no detalhamento de como essa liberdade deve ser exercida. Isso porque as constituições se preocupam em regulamentar os órgãos estatais e detalhar o funcionamento deles; como a imprensa não é um órgão estatal, geralmente, as constituições trazem, apenas, diretrizes, sem maiores detalhamentos.
O que estou querendo dizer – antes de que me acusem de uma atitude anti-democrática, como se fosse aquele censor que restringia as publicações de romances – é que o Estado de Direito veio para garantir, justamente, aqueles direitos humanos que mencionamos anteriormente; o Estado de Direito veio estabelecer o que pode e o que não pode, e, para tanto, ele utiliza a lei. A lei, em síntese, vem com a finalidade de dizer o que eu posso e o que eu não posso fazer, pois nenhuma liberdade pode ser exercida de forma desregrada e ampla; a falta de lei (anomia) acaba por se transformar em anarquia (ausência de governo).
Ou seja, a imprensa pode, e deve, informar os fatos que ocorrem na sociedade, mas a ela está vedado abusar dessa liberdade de informar, a atingir os direitos individuais da intimidade, privacidade, honra, boa fama, etc. É por isso que, diferentemente do que faz a Constituição Federal do Brasil, a constituição espanhola, ao disciplinar a liberdade de informação, acrescenta um adjetivo: a informação deve ser “veraz”.
O que a constituição espanhola diz é que a informação, para ser publicada, tem que ser verdadeira; ela tem que se ater aos fatos que, realmente, ocorreram. O jornalista, antes de publicar um fato, deve, diligentemente, pesquisar, analisar os fatos e ouvir os envolvidos, garantindo, assim, o contraditório. A impressa, portanto, não pode publicar simples rumores, justamente para preservar os direitos que os concidadãos possuem, tais como privacidade, reputação, etc.
É interessante notar, dessa forma, que diferentemente do exercício da liberdade de opinião, a liberdade de informação possui uma maior restrição, isso porque, na liberdade de opinião, aquele que opina não está limitado a expressar uma idéia verdadeira, pois ela é baseada em visões subjetivas, de modo que não se pode exigir de um crente que ele comprove que Deus existe, para só então ele manifestar a crença dele; da mesma forma, não se pode exigir que um ateu comprove que Deus é uma ficção.
Sendo assim, toda vez que a imprensa publica fatos, sem ter agido com aquela diligência que deve ser exigida, na investigação deles, ela abusa de uma liberdade (direito) e, portanto, deve ser responsabilizada por esse desvio.
Por enquanto, vou ficar por aqui; semana que vem, pretendo fazer aquela análise da atuação da impressa e do funcionamento do sistema penal, como prometi no início desse artigo.
Boa semana e exerçam, durante esse Festival de Inverno, com responsabilidade, mais um direito humano: o direito ao lazer. Como diz aquela música dos Titãs: “... a gente não quer só comida, a gente quer bebida, diversão, balé ...”. Festival de inverno, enfim, é também exercício de mais um Direito Humano!
Jeová Barros de Almeida Júnior – Advogado, formado pela Universidade Católica de Pernambuco, com pós-graduação em Direito Empresarial, pela Fundação Getúlio Vargas e mestrando em Direito Penal Internacional pelo Instituto de Altos Estudos Universitários da Universidade de Granada, na Espanha.
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