Estamos postando a segunda parte do artigo do advogado Jeová Barros Jr. sobre a Lei da Anistia que esta semana foi votada pelo STF e está em vigor (o julgamento terminou com o placar de 7 a 2, pela manutenção da Lei da Anistia). Neste novo texto, o articulista disserta sobre ditaduras e principalmente a Argentina. Vamos a ele.
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Terminei o artigo anterior dizendo que pretendia relatar o estado das coisas, ou seja, como a questão da anistia tem sido encarada.
Então, retomando o raciocínio, a Lei da Anistia foi votada, e aprovada, em agosto de 1979, no marco do processo da redemocratização, período esse que seguiria com a campanha pelas diretas, a qual não logrou êxito, pois Tancredo Neves viria a ser eleito de maneira indireta, pelo colégio eleitoral.
Como mencionamos, anteriormente, várias outras ditaduras surgiram, na América do Sul: primeiramente, na década de 60, no Uruguai, Peru; já na década de 70 ocorreram as mais traumáticas, que foram a do Chile, cujo presidente eleito, Salvador Allende, acabou se suicidando, após o ataque e bombardeio do palácio de La Moneda, para não se entregar e a outra foi a Argentina, com seus milhares de desaparecidos, sendo a considerada a mais cruel do chamado Cone Sul.
A ditadura Argentina cometeu atrocidades indescritíveis, além das torturas, assassinatos, desaparecimentos, estupros, como por exemplo, os chamados “vôos da morte”, nos quais os presos políticos, após serem torturados, eram levados em aviões, e jogados ao mar ou no Rio da Prata.
Ou, ainda, pior: as mulheres gestantes presas, após darem à luz, eram torturadas e assassinadas, sendo que os filhos delas eram entregues a militares, para serem criados pelos próprios algozes. Foi desse fato que surgiu o tão conhecido movimento das chamadas “Avós da praça de maio”, que são aquelas avós que perderam suas filhas e que, até hoje, possuem a esperança de reencontrar os netos que sobreviveram às mães seviciadas e assassinadas, nos porões da ditadura argentina.
Existem personagens macabros e dignos de obras de ficção, como o não menos conhecido Alfredo Astiz, denominado “garoto mimado” da ditadura argentina, ou conhecido também como o “anjo da morte”, o qual foi condenado, ano passado, pelos crimes que cometeu, nesse período.
Passo a transcrever parte de um artigo de Ariel Palácios, correspondente do jornal Estado de São Paulo, em Buenos Aires, e que está disponível aqui: http://blogs.estadao.com.br/ariel-palacios/2009/12/ :
“FREIRAS E GARGALHADA
Astiz foi responsável pelo assassinato de três fundadoras das Mães da Praça de Mayo, entre elas, Azucena Villaflor. Ele também é requerido por vários tribunais na Europa. Na Itália, ele foi acusado de ter sido o autor do desaparecimento de três cidadãos italianos em território argentino durante o regime militar. Em 1990, a Justiça francesa condenou o ex-capitão – à revelia – à prisão perpétua pela morte das freiras francesas Alice Domon e Leonie Duquet.
As duas freiras foram sequestradas em uma operação planejada por Astiz, que, com suas suas feições de “menino bem-comportado”, infiltrou-se na organização de defesa dos Direitos Humanos das Mães da Praça de Maio, fazendo-se passar pelo irmão de um desaparecido. A cara ingênua de Astiz convenceu as Mães, que somente perceberam quem ele era tempos depois. Sob este disfarce, Astiz recolheu informações e decidiu que as duas religiosas idosas deveriam ser eliminadas.
Astiz também é procurado pela Justiça da Suécia, já que durante uma operação para sequestrar militantes de esquerda, ele e seu grupo entraram na casa de uma estudante na Grande Buenos Aires. Ali estava Dagmar Hagelin, uma jovem sueca, amiga da estudante procurada pelos militares. A adolescente fugiu dos repressores e foi derrubada com um tiro certeiro de Astiz na nuca. O oficial, ao comprovar sua pontaria – segundo testemunhas – soltou uma gargalhada.”
Para além desse aspecto (dês)humano, convém mencionar, também, os aspectos econômicos e sociais do período da ditadura argentina:
• Entre 1976 e 1983 os militares assassinaram ao redor de 30 mil civis, entre eles, crianças e idosos, segundo estimativas de ONGs argentinas e organismos internacionais de defesa dos Direitos Humanos.
• Em sete anos (entre o início e o fim do regime) de Ditadura, a dívida externa subiu de US$ 8 bilhões para US$ 45 bilhões.
• A inflação do governo civil derrubado pela Ditadura, que era considerada um índice “absurdamente alto” pelos militares, havia sido de 182% anual. Mas este índice foi superado pela política econômica caótica da Ditadura, que encerrou sua administração com 343% anual.
• A pobreza disparou de 5% da população argentina para 28%.
• A participação da indústria no PIB caiu de 37,5% para 25%, o que equivaleu a um retrocesso dos níveis dos anos 60.
• Ao mesmo tempo em que tomavam medidas neoliberais, como a abertura irrestrita das importações, os militares continuavam mantendo imensas estruturas nas empresas estatais, que transformaram-se em cabides de emprego de generais, coronéis e seus parentes.
• O Orçamento inicial da Copa de 1978, que se deu na Argentina, era de US$ 70 milhões. Custo final da Copa: US$ 700 milhões (o valor supera amplamente o custo da Copa realizada na Espanha, em 1982, que foi de US$ 520 milhões).
Bem, acho que, por enquanto, basta! Não se pode esperar muito de um regime baseado no arbítrio e no voluntarismo, como é a ditadura, seja ela de esquerda ou de direita.
Mas, voltando, fiz esse histórico da ditadura argentina, por duas razões. A primeira eu já externei: foi a ditadura mais cruel do Cone Sul. A outra razão é que, tal como aqui, na Argentina, antes da derrocada do regime de exceção, que se deu em 1983, também foi aprovada uma Lei de Anistia.
Ocorre que, na Argentina, tal lei foi julgada inconstitucional e, já em 1985, os militares estavam sentados nos bancos dos réus, sendo condenados e punidos pelos crimes contra humanidade, praticados durante o (des)governo deles. Semana passada, o último dos ex-presidentes militares argentinos foi condenado a 25 anos de prisão; digo o último, porque todos os demais, da mesma forma, já foram condenados e alguns já cumpriram as suas penas.
Mas isso não é tudo! Mesmo após a declaração de inconstitucionalidade da Lei de Anistia, pela Corte Constitucional Argentina, no ano de 1986, por pressão de setores militares, nova tentativa foi levada a cabo, no sentido impedir novos julgamentos e condenações de militares que ainda não tinham sido punidos; e tal tentativa se deu por meio da chamada “Lei do Ponto Final”, a qual determinava um prazo máximo de 60 dias para o ajuizamento de novas ações; após esse prazo, os crimes eram considerados prescritos.
Não satisfeitos, fizeram lobby para aprovação de uma outra lei, a qual objetivava impedir a punição de oficiais do segundo escalão, isso em 1987, no que ficou conhecida como “Lei de Obediência Devida”, ou seja, os oficiais que mataram, torturaram, etc., como o “anjo da morte”, nada mais tinham feito que obedecer a ordens e, portanto, não poderiam, de acordo com esse raciocínio, serem punidos.
Pensam que acabou?! São muitas as artimanhas do poder e, em 1989, o presidente Carlos Menem, por meio de decretos, concedeu indultos para os militares que já haviam sido condenados, no período entre 1983 e 1985, antes da chamada “Lei do Ponto Final”, como o ex-presidente General Videla, perdoando, assim, os crimes que haviam sido cometidos.
Não bastasse esse feito, Carlos Menem, que não possuía a maioria na Corte Constitucional, com o receio de ver os indultos serem considerados incostitucionais, assim como as Leis do “Ponto Final” e da “Obediência Devida”, conseguiu aprovar uma emenda constitucional, a qual possibilitou o aumento do número de 11 ministros para 15, a fim de que, assim, obtivesse a maioria e garantisse a vitória numa eventual proposição de inconstitucionalidade de tais instrumentos normativos (leis e decretos).
Felizmente, para aqueles que militam na área dos Direitos Humanos e que desejam ver toda sorte de crimes punidos, todo esse esforço foi frustrado, uma vez que tais leis e decretos foram, finalmente, considerados inconstitucionais (assim como a primeira tentativa, que também foi frustrada, através da declaração de inconstitucionalidade da Lei de Anistia).
Da mesma maneira, em vários países que passaram por esse processo de redemocratização, as leis de anistia vêm sendo consideradas inconstitucionais, como já ocorreu no Peru; da mesma forma, os agentes de estado, ou seja, quer militares, quer civis, que cometeram crimes contra a humanidade já foram processados, julgados e condenados e estão cumprindo pena.
Esperamos que o STF, hoje, não se furte da função constitucional dele e dê a interpretação que desejamos ver, pois ainda somos, infelizmente, como ocorreu em tantos momentos da nossa história, os últimos a seguir o bom exemplo de países que passaram por processos traumáticos.
Lembremos que fomos um dos últimos países da américa a conseguir independência; também fomos o último a abolir a escravidão; somos um dos únicos países que não fizemos uma reforma agrária que possa ser considerada como tal.
Para terminar, quero trascrever a estrofe de uma música da banda Engenheiros do Hawaii:
“Agente secreto, agente mobilíario, gente como a gente: presidente, operário.
Empresas estatais, estátuas de generais, hérois de guerra, guerras pela paz.
Hindus, industriais, tribos e tribunais, pessoas que nunca aparecem ou aparecem demais.
Isso me sugere muita sujeira, isso não me cheira nada bem; tem muita gente se queimando na fogueira, muita pouca gente se dando muito bem.
... Fascistas de direita, fascistas de esquerda são todos iguais...”
(Tribos e Tribunais)
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Jeová Barros de Almeida Júnior – Advogado, formado pela Universidade Católica de Pernambuco, com pós-graduação em Direito Empresarial, pela Fundação Getúlio Vargas e mestrando em Direito Penal Internacional pelo Instituto de Altos Estudos Universitários da Universidade de Granada, na Espanha.
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