Volto, mais uma vez, e pela última, a escrever sobre o período do governo militar, os crimes perpetrados durante esse período (por civis e militares) e a Lei da Anistia, considerada por alguns como sendo a lei da conciliação.
Na segunda metade da década de 70, a ditadura começou a sofrer forte pressão, tanto interna quanto externa, para que ocorresse a chamada distenção; terminado o governo de Ernesto Geisel, João Figueiredo assumiu a presidência em 1979 e tomou a iniciativa de propor a Lei da Anistia (Lei 6683/79), a qual foi aprovada e sancionada, perdoando os crimes cometidos, devolvendo os direitos políticos daqueles que tinham sido cassados, reintegrando cargos públicos, etc.
No mês passado, o STF julgou a ADPF 153, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e pela Associação Juízes Para a Democracia, tendo por finalidade aferir a compatibilidade da Lei da Anistia com a Constituição Federal de 1988; mas a filigrana maior que se objetivava era questionar se a expressão “crimes políticos e conexos” incluía os chamados crimes comuns. Os ministros do supremo decidiram, por sete votos a dois, que a Lei da Anistia era válida e que, portanto, continua vigente no nosso ordenamento.
ALGUNS CONCEITOS
Leis de anistia, originalmente, visam a perdoar os chamados crimes políticos, quando ocorrem as chamadas revoluções ou momentos de perturbação social; são, portanto, crimes cometidos durante períodos de exceção, ocorrem nos chamados estados de sítio ou de defesa; por meio delas, os governantes perdoam os revoltosos que cometeram delitos contra a ordem política e social, ou contra o Estado.
Já os chamados crimes comuns são aqueles que, como o próprio o nome indica, não apresentam nenhuma peculiaridade especial; crimes que, comumente, são cometidos na sociedade, não se levando em conta a existência, ou não, de estados de exceção (estados de sítio e de defesa); é o furto, o homicídio, o estupro, etc.
Na verdade, porém, os crimes comuns podem ocorrer em períodos de normalidade como podem ocorrer em períodos de exceção; da mesma forma, um crime político pode ser cometido fora de um período de exceção, embora, em regra, ocorram naqueles momentos de agitação.
Pois bem, o que a ADPF pretendia era saber, justamente, se os chamados crimes comuns, que foram cometidos por civis e militares, no período da ditadura (que é um regime de exceção), estavam incluídos naquela expressão “crimes políticos e conexos”, pois, em caso negativo, ou seja, caso não tivessem sido perdoados os crimes comuns cometidos, na e pela ditadura, aqueles que haviam matado, roubado, seqüestrado, torturado, etc., poderiam, enfim, ser processados e condenados, uma vez que a Lei da Anistia não os teria perdoado.
POSIÇÃO DO STF
O Supremo Tribunal Federal entendeu que a Lei da Anistia havia, sim, perdoado os crimes comuns, extinguindo a punibilidade deles, e que, portanto, não mais se poderia aventar a penalização de tais crimes que ocorreram durante a ditadura.
Os principais argumentos do STF foram que, primeiramente, a Lei da Anistia tinha sido o produto de um acordo estabelecido entre o governo militar e a oposição ao regime e, dessa forma, não se poderia, passados trinta anos, ter tal acordo por inválido. Numa palavra que pode ser mais bem entendida, foi uma espécie de contrato, que foi assinado pelas duas partes e que, portanto, deve ser cumprido.
Outro argumento utilizado, nas fundamentações dos ministros, é que, mesmo que a Lei da Anistia não tivesse perdoado os crimes comuns, tais crimes teriam sido alcançados pela prescrição e, sendo assim, o estado brasileiro não mais poderia punir os assassinos, torturadores, estupradores.
A prescrição, para aqueles que não estão acostumados com expressões do Direito, é um instituto jurídico que, em síntese, determina que aquele que tem um direito, uma pretensão, deve buscar a satisfação desse direito, dessa pretensão, dentro de um determinado tempo.
Por exemplo: se eu tenho uma dívida com meu caro companheiro Ronaldo César, ele vai ter cinco anos para me cobrar; passados esses cinco anos, a dívida continuará existindo, mas ele não mais poderá acionar a justiça para me forçar a pagá-lo.
Ou seja, de acordo com a lei brasileira, o estado não mais pode processar e julgar os crimes cometidos durante a ditadura porque já se passaram mais de vinte anos, que é período máximo de prescrição previsto pelo Código Penal.
DAS MENTIRAS CONTADAS E DAS VERDADES OMITIDAS
Chegou, finalmente, a hora de expor a minha posição. Usando uma expressão bem conhecida nos tribunais, data vênia, ou seja, com a devida licença, não concordo com o julgamento do STF, pelas premissas utilizadas e pelas conseqüências que dele podem advir.
Primeiramente, quero atacar as premissas utilizadas e, depois, mostrar as consequências que esse julgamento traz e o que sinaliza, isto é, qual é a mensagem que é enviada para a sociedade.
Como afirmei, logo no início, leis de anistia tem por finalidade perdoar crimes políticos e crimes políticos são aqueles cometidos contra o Estado; dessa forma, leis de anistia, no mundo todo, não perdoam crimes comuns, ou seja, não perdoam estupro, tortura, assalto, seqüestro, etc.
Outra característica do crime político é que ele tem como vítima o Estado; já no crime comum, a vítima é uma pessoa, um cidadão. Sendo assim, por exemplo, um crime de dano, o qual consiste na destruição de um bem (um carro, um prédio), cometido contra uma repartição pública, num momento de agitação, pode ser perdoado.
Coisa bem diversa é um crime que atinge uma pessoa, como uma lesão corporal, um seqüestro, um homicídio; esses, jamais, podem ser perdoados pelo Estado, por não serem, justamente, crimes políticos; não podem ser perdoados, até mesmo, porque quem tem que perdoar é a vítima e, nesse caso, a vítima não é o Estado, mas sim um cidadão.
Mais uma característica das leis de anistia, mas essa de ordem bem técnica, é que as pessoas que recebem o perdão são aquelas que foram processadas, julgadas e condenadas. Ocorre que a nossa lei de anistia veio perdoar quem não foi processado, não foi julgado e não foi condenado.
Aliás, grande parte dos que foram julgados não poderia ter sido perdoada, pela lei da anistia, porque, ao tempo em que ela foi sancionada, já estavam “desaparecidos”, ou seja, tinham sido executados, sumariamente, sem direito de defesa, sem um processo justo, pelos agentes da ditadura. Esse foi o julgamento que a ditadura deu aos seus opositores: tortura, desaparecimento e morte, nas recâmaras daquele poder covarde, que até hoje se esconde e não assume os malsinados atos que perpetraram.
Mas isso não é tudo! Hoje, os defensores do regime militar e da Lei da Anistia advogam que ela foi fruto de um acordo, o que é uma mentira deslavada, uma vez que ela foi imposta. Não houve negociação entre o governo e a oposição! Simplesmente, o projeto de lei foi elaborado pelo governo e empurrado goela abaixo do Congresso Nacional.
É preciso se lembrar que os assaltantes do poder de 1964, os militares, detinham, no Congresso Nacional, a maioria, mas tal maioria sequer tinha sido conquistada nas urnas; foi, por exemplo, através dos denominados “senadores biônicos” que a ARENA (partido do governo) possuía maioria no senado.
Os senadores biônicos, para os que não lembram, detinham esse nome porque eram nomeados pelo governo, não sendo, portanto, eleitos; eram, como o próprio nome diz, biônicos, ou seja, robôres, sem autonomia, sem vontade e querer próprios. Alguém pode, em sã consciência, acreditar que, numa ditadura, alguma coisa é negociada?!
Eis a mentira contada: a tal reconciliação, o tal acordo; como se fosse possível um acordo, uma justa negociação, entre o assaltante e o assaltado; o assaltante põe o revólver na mesa e diz: “te dou cem reais pelo carro”; o assaltado vai oferecer resistência?! Calo-me!
Quero trazer, agora, algumas citações, como a do Senador Pedro Simon, pelo Rio Grande do Sul, até hoje uma referência na política nacional, como um dos poucos baluartes da ética e da seriedade, no nosso parlamento; vejam o que ele vociferou, à época da discussão da Lei da Anistia:
“Na verdade, este Poder (legislativo), nesta noite, deu uma demonstração de humilhação perante a Nação; não se afirmou no sentido de mostrar que tinha condições de aperfeiçoar o projeto, desde o momento em que o partido oficial (a ARENA) não teve nem o direito de permitir algumas emendas; os homens do Governo poderem aperfeiçoar para dizer que têm uma autonomia relativa, numa democracia relativa (sic!). Pelo contrário, toda a Nação sabe, e a Imprensa noticiou que o Relator, que os líderes da ARENA, no Gabinete do Ministro da Justiça, estudaram emenda por emenda e decidiram lá o que seria votado aqui. E decidiram lá, Sr. Presidente, lá no Poder Executivo, o que podia ser votado aqui.
Não tiveram nem um mínimo gesto de grandeza com esse partido oficial (ARENA) para apenas dizer que a emenda “A”, a emenda “B”, a emenda “D”, a emenda “E”, a emenda “F”, vocês vão aprovar. No sentido de que, pelo menos, tivessem um mínimo de condições para se dizer que algo este Congresso fez para aprimorar o projeto” [grifos nosso]
Para mostrar que outras mentiras hoje são contadas, com o único intuito de manter a impunidade, vamos dar a voz a atores do próprio governo militar, ao tempo da discussão da anistia, em 1979. O Senador Ernani Satyro (ARENA), relator do projeto de lei, em determinado momento, ao se posicionar sobre as emendas sugeridas pela oposição, mas que nenhuma foi adotada, a atestar, mais uma vez, que não houve acordo, assinalou que
“pelas razões já expostas em relação a outras emendas, o governo e o seu partido não concordam em anistiar pessoas condenadas por crimes contra a humanidade”
Ainda podemos, contudo, relatar o que o próprio presidente João Figueiredo defendeu, ao tempo da discussão da anistia; segundo a jornalista Glenda Mezzaroba, em sua tese de mestrado, publicada pela FAPESP (Um acerto de contas com o futuro. A anistia e suas consequências: um estudo do caso brasileiro):
“No texto, Figueiredo sugeria que o projeto de lei que enviava ao Congresso tinha maior amplitude do que os apresentados anteriormente, a título de sugestão ou como proposta de emenda constitucional, e lembrava que não teriam direito à anistia os condenados pela Justiça por crimes que não eram estritamente políticos – na visão do governo, era esse o caso dos classificados como terroristas, cuja ação, para os militares, não se dera contra o regime ou contra o Estado, mas contra a humanidade” [grifos nosso]
Vê-se que crimes políticos são os crimes cometidos contra o Estado, como o próprio ex-presidente Figueiredo dizia ao tempo; vê-se, também, que crimes contra a humanidade (tortura, estupro, seqüestro) não são crimes políticos, mas, como o próprio nome diz, crimes contra a humanidade.
O perturbador dessas alegações, tanto do ex-presidente quanto do relator, é que, na mentalidade doentia deles, há diferença entre os estupros e assassinatos cometidos pelos agentes da ditadura e os seqüestros e homicídios cometidos por terroristas. Crime é crime, independentemente de quem o cometa e, portanto, deve ser punido, tenha sido ele cometido por paixões mesquinhas ou pelas chamadas “razões de estado”.
Por fim, quero atacar o último argumento dos bastiões da Lei da Anistia, qual seja, a de que os crimes já estão prescritos. De fato, devo reconhecer que quem matou, quem seqüestrou, quem estuprou ou torturou, na década de 70, não pode ser punido, de acordo com a legislação vigente à época, pelos crimes que foram cometidos, uma vez que já se passaram mais de vinte anos.
Mas, se aplicássemos a legislação internacional e os tratados de direitos humanos dos quais somos signatários e que, uma vez ratificados pelo congresso, se tornam legislação nacional, tais crimes seriam contra a humanidade e, portanto, imprescritíveis, o que significa dizer que eles podem ser punidos em qualquer momento!
Além dessa imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, há, ainda, mais um detalhe a ser mencionado, que diz respeito aos desaparecimentos forçados e da ocultação de cadáveres. Tais crimes são crimes permanentes, ou seja, são aqueles crimes que foram cometidos, no tempo da conduta ilícita, e que continuam sendo cometidos no presente, porque o comportamento criminoso não cessou.
Isso quer dizer que, em relação a esses crimes, a prescrição sequer começou ser contada! É o que ocorre com o seqüestro. Suponhamos que eu cometi um seqüestro há dez anos e que ainda mantenho o refém em cativeiro; o comportamento criminoso se protrai, ou seja, se prolonga durante o tempo, e eu ainda estarei cometendo o crime ainda hoje.
Dessa forma, os militares têm, sim, que responder por esses crimes, pois, para eles, não começou, sequer, a correr a prescrição. Eis mais uma verdade não contada!
Significado da Anistia.
Para concluir e mostrar o quanto é absurdo esse raciocínio de anistia, vamos ver o que ela significa, em sua etimologia.
Anistia vem do grego e tem o sentido de perdão. Eu magôo alguém e esse alguém me perdoa. O que o governo militar concedeu, através da anistia, foi o perdão, para ele mesmo, das atrocidades que ele cometeu, através de seus agentes, contra o povo brasileiro. É como se eu desse uma bofetada no meu amigo Ronaldo César e dissesse: “Ronaldo, eu me perdôo” e, assim, tudo ficaria esquecido.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados Americanos, denomina tais leis de anistia como leis de “auto-anistia”, o que é mais propício e verdadeiro, pois são leis de “auto-perdão”; por isso mesmo é que a Corte tem julgado inválidas tais leis e determinado a anulação delas, como ocorreu no Peru e na Argentina. Além de inválidas, são imorais!
José Saramago, escritor português e prêmio nobel da Paz, na semana passada, escreveu em seu blog a respeito da anistia espanhola aos crimes cometidos durante a ditadura de Franco, e assim se posicionou:
“Invoca-se aqui a Lei da Amnistia para justificar a perseguição a Baltasar Garzón, mas, em minha opinião de cidadão comum, a Lei da Amnistia foi uma maneira hipócrita de tentar virar a página, equiparando as vítimas aos seus verdugos, em nome de um igualmente hipócrita perdão geral” (Saramago)
Concluindo, quero tecer considerações sobre a mensagem que é enviada para a sociedade e para as autoridades, através desse julgamento do STF. A mensagem enviada é a de impunidade dos poderosos e, pior, a de que, em determinadas circunstâncias, a tortura se justifica, o homicídio também; que, em nome da famigerada “razão de estado”, qualquer governante pode matar, usurpar e destruir, como os USA fizeram, ao invadir o Iraque.
São essas “razões de estado” que legitimam guerras e outros quejandos; razões que nada mais são do mentiras levantadas para justificar crimes... Onde estão as armas químicas de Saddam Hussein, que justificaram, ou tentaram justificar, a invasão do Iraque?
O primeiro genocídio cometido, no século passado, com a característica deliberada de se eliminar um determinado povo, foi cometido contra os Armênios, em 1915. Conta se que Hitler, na segunda guerra mundial, quando estava a massacrar judeus, ciganos e homossexuais, teria dito, às vésperas da entrada na Polônia: “Afinal, quem fala hoje do extermínio dos Armênios?”.
As verdades precisam ser contadas e as mentiras desmascaradas, para que os erros do passado não possam ser cometidos no presente. A bíblia diz que “conhecereis a verdade e ela vos libertará”. Para que sejamos, todos, livres, e não fiquemos presos a mentiras, é que precisamos saber como as coisas foram e como elas são.
Forte abraço a todos e um bom domingo!
Ps: quero fazer duas coisas: deixar meu e-mail para aqueles que, porventura, desejem trocar idéias e sugerir fontes para um melhor conhecimento das questões analisadas aqui.
Primeiramente, sugerir o maravilhoso filme “A batalha de Argel”, que conta o processo da libertação da Argélia do domínio francês e como a tortura foi utilizada pelos franceses contra os argelinos. Mas sugiro que peguem a edição que tem o depoimento dos generais e comandantes franceses, confessando a tortura, numa edição extra que saiu há pouco tempo.
Meu e-mail: jeovabjunior@yahoo.com.br
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Jeová Barros de Almeida Júnior – Advogado, formado pela Universidade Católica de Pernambuco, com pós-graduação em Direito Empresarial, pela Fundação Getúlio Vargas e mestrando em Direito Penal Internacional pelo Instituto de Altos Estudos Universitários da Universidade de Granada, na Espanha.