quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Crônica de João Capiberibe - Observações de 2008

Caldeirão de Jureminha x Transposição do São Francisco
João Capiberibe


Domingo, 05 de maio de 2008.

"Manoel e Núbia nos apanharam no hotel às oito da manhã. Embarcamos para um reencontro com projetos do passado numa imersão no tempo em que a militância política se exercia com paixão, perseguindo a utopia.
 
Puxa! 

Quantas indagações? Estaria funcionando a casa de farinha de Angelim? E a de Lajedo? E o Caldeirão de Jureminha? Deu certo? Será que tem água? E os camponeses pobres da comunidade do Jenipapo? Melhoraram de vida?

A memória insegura, embaçada pela névoa do tempo, buscava encurtar a distância entre passado e presente. Tateando, levou-me aos primeiros meses de 1979, quando eu, Janete e os três filhos pequenos, vivíamos em Maputo, dedicados por inteiro a ajudar na reconstrução de Moçambique, destroçado por uma trágica guerra de libertação contra o colonialismo português. 

Um belo dia o telefone tocou, era Mara, anunciando a presença no país, de um ícone da política de nossa geração. Em seguida convida a mim e Janete para jantar em sua casa. Mara, mulher guerreira, acostumada a receber insubmissos de vários quadrantes, brindou-nos com um jantar privilegiado, no cardápio, palestra com uma das figuras mais importante da esquerda brasileira, o ex governador de Pernambuco, Miguel Arraes. 

Quando o mestre começou a falar, fez-se um silêncio profundo. Apesar dos longos anos de exílio, descreveu a conjuntura política como se tivesse acabado de chegar do Brasil, foi ao passado como testemunha ocular da história e projetou o futuro nos convocando para iniciarmos a caminhada de volta. Antes de Arraes concluir sua fala, emocionado, cochichei com Janete: - vamos morar em Pernambuco, vamos trabalhar com Arraes. 

Dito e feito, promulgada a Lei da Anistia em agosto de 1979, seis meses depois nos instalamos em Olinda. Fui trabalhar no CENES (Centro de Estudos e Realizações Sociais), ONG criada por ele, coordenada por Mara, dedicada a apoiar projetos voltados aos trabalhadores rurais de Pernambuco.
 
Com o economista francês Philippe Lamy, então marido de Mara, percorri a Zona da Mata e o Agreste pernambucano fazendo contato com pessoas da relação de Dr. Arraes. Assim o chamo, pois era assim que o povo o chamava. Dessas andanças, das preocupações e das longas conversas com ele, surgiu nosso primeiro projeto, que buscava aproximar os moradores de Ponte dos Carvalhos, bairro periférico, da cidade do Cabo, no litoral sul, com camponeses dos municípios de Lajedo e Angelim. Colocamos tudo no papel, com começo, meio e fim. Despachamos o projeto para a Europa. A resposta veio rápida e surpreendente, aprovado integralmente, seria financiado por uma ONG holandesa chamada NOVIB.
 
Mãos a obra, a começar pela construção da sede da associação comunitária de Pontes dos Carvalhos, onde, entre outras atividades, seria instalado um ateliê de costura que confeccionaria roupas a ser comercializadas pelas associações de pequenos agricultores de Angelim e de Lajedo, que por sua vez forneceriam farinha produzida pelas duas fábricas a ser construídas nessas comunidades. No projeto também constava, a construção de um açude, que demos o nome de Caldeirão de Jureminha, e um caminhão para o transporte dos produtos. No entanto, não havia previsão de recursos para mão de obra, essa deveria ser a contrapartida das comunidades envolvidas.
 
Dr. Arraes me orientou que procurasse os sindicatos de trabalhadores rurais dos dois municípios. Assim procedi, em Lajedo, as portas do sindicato me foram abertas pelo seu presidente Vilebaldo e pelo tesoureiro Osvaldo. Já em Angelim, o sindicato rural não quis conversa, tive que partir para o corpo a corpo, foi nessas andanças que bati na porta de Rui e Madalena, na comunidade do Jenipapo, distante uns cinco quilômetros de Angelim. Rui muito atencioso, ouviu minhas explicações sobre o projeto, gostou, e se dispôs a ajudar. Passado alguns dias, graças a ele, reuni na casa de Zé Tito, com um pequeno grupo de seis a sete camponeses. Daí saímos com a data marcada do primeiro mutirão para fabricação manual dos tijolos que seriam utilizados na construção da fabrica de farinha. 

Vinte e sete anos depois, eu e Janete, decidimos esticar em mais um dia nossa estadia em Olinda, onde participávamos de um congresso de parteiras tradicionais, para rever nossos velhos parceiros, e saber como a democracia os havia tratado ao longo desses tantos anos. 

Com Núbia na direção, entramos no ramal de terra batida que leva à comunidade de Jureminha, quinhentos metros depois, achamos o que procurávamos, o Caldeirão, cheinho de água, do jeitinho que havíamos deixado há vinte e sete anos. Estávamos relembrando os detalhes de como quebramos as pedras para aprofundar a bacia do açude, se manual ou com explosivos, quando Seu Manoel, 64 anos, montado em uma bicicleta vermelha, aproximou-se. E foi entrando na conversa:
 
- Vixe! Eu estou lembrando de vocês. Claro! Foram vocês que andaram por aqui. Rindo muito, de puro contentamento, foi contando o que aconteceu na nossa prolongada ausência. Perguntei-lhe se o açude se mantinha com água na época seca.
 
- Isso é uma dádiva de Deus para nossa comunidade, quando seca tudo, é daí que todo mundo tira para muitas serventias. 
 
Suas palavras me emocionaram, fiquei feliz em poder comprovar a eficiência de uma solução local, de grande simplicidade e baixíssimo custo.
 

Fiquei imaginando, quantos lajedos de pedra existirão espalhados por esse sertão nordestino? Quantos desses podem ser transformados em açudes? Que pena que em nosso país, coisas simples, eficazes e baratas como o Caldeirão de Jureminha, fiquem absolutamente ignoradas enquanto projetos de bilhões, como a transposição das águas do São Francisco, prevaleçam, mesmo cheios de dúvidas.
 
Será que vai dar certo? O Velho Chico vai agüentar essa sangria? Impossível responder.


Como era domingo e queríamos ver a fabrica de farinha na comunidade de Salgadinho, Seu Manoel se adiantou para buscar a chave, quando chegamos lá, ele já se encontrava na porta dando as boas vindas:
 
-Vamos entrem! Venha ver, aqui tudo funciona. Dito isso, tratou de ligar, uma por uma, as maquinas usadas na fabricação da farinha. Em seguida apontou para a borda de um dos fornos. - Foi ali que Dr. Arraes sentou e ficou ouvindo a conversa cumprida de Vilebaldo e de Valdemar no dia da inauguração.


Depois da alegria de ver tudo funcionando em Lajedo, fomos para Angelim, onde também encontramos a fabrica de farinha no mesmo lugar, como antes. Não pudemos visitá-la por ser domingo e pela surpresa da visita não foi possível localizar a chave. No entanto, fomos informados que continuava funcionando normalmente. Aproveitamos para abraçar seus construtores, encontramos com Rui e Madalena, Zé Posidônio, Zé Tito, João Ferreira, os primeiros a embarcar naquela marcante aventura humana, e que passado tantos anos nos receberam sorridentes, e de braços abertos. 

Para nossa maior satisfação, constatamos que o fantasma da fome já não ronda a comunidade, que todos vivem infinitamente melhor do que viviam naqueles tempos.


*João Capiberibe, ex-prefeito, ex-governador, ex-senador. vice-presidente nacional do PSB.

RÁDIO MÚSICA BRASIL MPB

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