É engraçado como, normalmente, nós não nos damos conta de que nossos pequenos e despretensiosos atos tornar-se-ão História um dia e serão contados, escritos, estudados e julgados pelos pósteros.
É bem verdade que essa regra não é geral: Michelangelo, por exemplo, devia estar plenamente consciente - e isso no exato momento em que esculpia o Davi - de que aquela seria uma das obras-primas da escultura mundial, até porque, momentos antes de ser o eleito pela Comuna di Firenze para levar a cabo a obra, travara com ninguém menos que Da Vinci - já uma celebridade - um renhido embate pelo direito de forjar ninguém menos que "o pequeno que derrubou o gigante Golias" - um símbolo de toda uma geração, a aludir ao pequeno ser humano que, naqueles dias de Renascimento, voltava a ser o centro do mundo, derrocando o teocentrismo medieval. Essa mesma argumentação vale para um Lúcio Costa e um Niemeyer, por exemplo, ao projetarem a nova Capital Federal, um feito, desde a origem, grandioso.
Mas eu não estou falando dos grandes momentos, nascidos para serem memoráveis, mas dos pequenos. Quantos daqueles homens do ciclo do gado nordestino estavam conscientes de que, ao erguerem uma rústica capela em suas terras, mais fruto de sua fé que de qualquer outra coisa, estariam entrando para a história como os grandes beneméritos da povoação que ali despontaria, em torno da primitiva igrejinha e da espontânea feira livre. Seriam elevados a "fundadores", tornar-se-iam legendas, ganhariam bustos e teriam cada pequeno ato de sua vida esmiuçado, desde os mais inconsequentes da adolescência até os finais, muitas vezes de intrigante recolhimento.
Uma Simoa Gomes, a matriarca de Garanhuns, por exemplo, que, mais de 100 anos antes da Lei Áurea, alforriava seus escravos, decerto sem imaginar que esse comportamento, mais aleatório que intencional, quando visto sob a ótica renovada dos séculos subsequentes, imprimiria a sua personalidade uma aura mágica de heroísmo, para além da senhora extremamente piedosa, quase uma beata, que ela realmente era.
De fato, como refletia Camus, as coisas só ganham sua real dimensão quando contadas. E isso deveria servir de alerta aos homens públicos, por exemplo, que, mesmo expostos aos olhares de todos, insistem em agir inconsequentemente, sem preverem que seus atos, os mínimos, absolvê-los-ão ou condená-los-ão perante o tribunal dos tempos. Foi não levando isso em consideração que se destruiu, por exemplo, o Castelinho de Ruber van der Linden e as Mercedárias, em Garanhuns. E que acabaram com a arborização do Casarão dos Lundgren e, agora, estão destruindo o Parque dos Eucaliptos, sob a alegação de que as mirtáceas, tão identificadas com os garanhuenses, após anos e anos de serviços prestados a esta terra, são agora vistas como plantas "exóticas" e "não ideais à arborização urbana".
O Relógio de Flores, por exemplo, desde que foi inaugurado, vem conquistando a simpatia de 10 entre 10 garanhuenses e visitantes. Sem embargo, não poucas foram as vezes em que se lhe tentou destruir, inclusive passando-se com um carro por cima de seus gramados e flores. Tudo perece, é verdade, e o relógio pode até sucumbir, engolido pela irresponsabilidade humana. Mas não se enganem: o relógio é apenas uma representação do tempo, e o julgamento desse, meus caros, ah, o julgamento do tempo é implacável.
Triste de quem passa inconsequente por esta vida e lega ao futuro um rastro de destruição. Apiedo-me de almas tão miseráveis, mas me conforta a certeza de que a justiça tarda, mas não falha.
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Igor Cardoso é membro do Instituto Histórico e Geográfico de Garanhuns e do Centro de Estudos de História Municipal (CEHM)